A expressão “bode na sala” serve para descrever uma situação em que há um complexo e incômodo problema para ser solucionado.
A questão do aumento dos preços dos combustíveis tem sido o bode expiatório pra uma questão mais profunda já há alguns anos. O debate na mídia sobre o aumento do preço dos combustíveis no posto surge a todo momento e intensificou-se nessa virada de ano.
Mais do que olhar para o “bode” do preço, em si, é importante entender o contexto sistêmico e os motivos reais que o trouxeram pra sala. Longe de querer esgotar o assunto, compartilho insights sobre esse tema tão importante, todos eles passando pelo papel da Petrobras e do governo, incluindo diversas iniciativas com as quais pude trabalhar na ANP para a superação de desafios e crises.
Dá pra dividir essa história em 3 partes.
PARTE 1 (até 2015): O BODE VIVE NA SALA
Até por volta de 2015, a Petrobras atuava de dois modos. Um: além da atividade empresarial, era a garantidora do abastecimento nacional – basicamente todo diesel e gasolina vendido no Brasil era produzido ou importado por ela. Dois: a empresa não seguia (necessariamente) preço internacional dos combustíveis e era, comumente, instrumento para controle da inflação.
Os preços que praticava no Brasil, ao vender o combustível, tinham lógica própria: atuava como empresa, mas atuava como instrumento do governo também. Era um amortecedor para os choques externos das cotações. Isso ora beneficiava, ora prejudicava a empresa.
Ao longo de décadas, isso consolidou a posição da Petrobras como única fornecedora nacional, seja produzindo, seja importando. Ninguém se arriscava a importar diesel e gasolina pra vender no Brasil, pela incerteza sobre o preço que a Petrobras praticaria. Além disso, praticamente toda a estrutura produtiva e de terminais pertencia à empresa. Pra qualquer empresário, o incentivo pra competir com a gigante, sob incerteza, era mínimo. Não tendo um setor privado com incentivo pra também fornecer combustível, sobrava pra Petrobras a tarefa de continuar sendo a garantidora do abastecimento, na produção e na importação.
É um círculo vicioso consolidado que poucas vezes se podia, até, questionar.
O bode vivia na sala.
PARTE 2 (2016 a 2018): O BODE EXPIATÓRIO
Veio a crise financeira e de gestão que assolou a Petrobras. Embora o pior tivesse ocorrido, ele também gerou uma correção de rumos.
Em 2016, na revisão do seu Plano Quinquenal de Negócios 2017-2021, vieram 2 reposicionamentos estratégicos inéditos[1]. Um: a empresa anunciou a mudança da política de preços, abrindo caminho pra um maior alinhamento com preço internacional. Dois: informou sua saída do papel de garantidora última do abastecimento dos combustíveis no Brasil.
Era o círculo vicioso sendo quebrado.
E o mercado respondeu: se antes não se arriscava pela influência do governo no preço e pela dominância da Petrobras nas estruturas portuárias, agora já podia ensaiar uma atuação.
Os números comprovam. Em 2015, a Petrobras, além de deter 99% da produção, também era responsável por quase toda importação de diesel e gasolina. Em 2017, o cenário era outro. Muitas empresas entraram no mercado, e investiram em estrutura nos terminais aquaviários. Algo inédito até então.
Em 2018, a tendência se reverteu, sinalizando um teste pra nova diretriz. Vejam os gráficos (fonte: ANP/2019):
Números à parte, esse período foi um ensaio. A sociedade não estava ainda preparada para enfrentar uma sistemática de preços flutuantes de combustíveis. O mercado tomou riscos. O governo hesitou várias vezes para não interferir na política de preços.
Fato é: a oscilação dos preços internacionais reverberou em reajustes constantes no mercado interno. O preço no posto estava alto.
O bode da sala virou bode expiatório. Bode expiatório é aquele que leva a culpa sozinha pelo problema, mesmo não sendo a culpada maior. A política de preços da Petrobras foi esse bode. E a expressão maior dessa crise foi a Greve dos Caminhoneiros, em 2018.
Foi um marco para o setor, por um lado ruim e por um lado bom.
Pelo lado ruim, fez o governo intervir negativamente na economia. Subsidiou o setor com R$ 9,5 bilhões e recriou o tabelamento de fretes. Velha receita para um problema velho. Ao fim, desorganizou toda uma estrutura de incentivos que estava se ensaiando para o mercado, apenas para poder manter um preço menor sem ter que obrigar a Petrobras a reduzir artificialmente seu preço.
A subvenção ao óleo diesel, por exemplo, acabou, no fim das contas, tirando do mercado de importações boa parte dos agentes que haviam se arriscado anteriormente, fazendo a Petrobras voltar a ser dominante.
Vejam esse movimento, ao longo de 2018 (fonte: ANP/2019):
Pelo lado bom, acelerou um debate por mudanças mais profundas, para tratar as causas estruturais do aumento de preços.
A lógica do bode expiatório parecia não servir mais.
PARTE 3 (2019-HOJE): VAI DAR BODE?
O ano de 2019 teve dois marcos. Primeiro: a Petrobras decide vender cerca de metade de suas refinarias. Ou seja, a produção de combustível não mais será (quase) exclusividade da empresa.
Segundo: o governo, através do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), determina diversas iniciativas para modernizar a estrutura e a regulação do setor.
Ano de pensar fora da caixa, de quebrar tabus, quebrar o círculo vicioso que tornou a própria Petrobras o bode expiatório.
Duas frentes se destacam.
Primeira: o foco na transparência de preços, na concorrência e na liberdade de precificação do mercado. Isso se tornou base pra tudo. Afinal, se não for assim, nenhum investidor racional se interessaria pelas refinarias que a Petrobras irá vender.
Segunda: qual será o real motivo de o preço do combustível ser alto? Qual o mecanismo mais eficaz para amortecer volatilidades nos preços?
É aqui que o debate está se encorajando. Fortalece a tese, por exemplo, de ter ICMS em valor fixo, e não percentual sobre o preço do combustível, já que assim ele funciona como amplificador das volatilidades. Também propostas de um “fundo de amortecimento dos preços”, financiado pelos royalties e participações especiais da exploração de petróleo, para suavizar as oscilações nos preços – tentando fazer, grosso modo, o que a CIDE nasceu para resolver, mas nunca foi eficaz porque o modelo de se pensar o problema era ultrapassado.
Este 2020 promete desafios. É só o começo.
Será que “vai dar bode”?