Elementos necessários para o desenvolvimento de uma visão estratégica e de política energética para a interiorização da oferta de GN no país
Atualmente, cerca de 90% dos municípios brasileiros não têm atendimento de gás natural via gasodutos.
Em geral estes municípios ficam distantes da atual rede de gasodutos de transporte e/ou não apresentam potencial de mercado que justifique o suprimento de gás natural via gasodutos ou via o transporte a granel. Nestes municípios, o mercado potencial para o gás natural é atendido pelos combustíveis concorrentes, como o GLP, o óleo combustível ou mesmo a biomassa.
Como o gás natural apresenta grandes vantagens do ponto de vista ambiental, técnico e econômico, é importante o desenvolvimento de uma visão estratégica e de política energética para a interiorização da oferta de gás natural no país.
Antes de tudo, é importante ressaltar que a interiorização da oferta de gás natural via gasodutos é uma missão das companhias distribuidoras de gás que possuem a concessão exclusiva de construção de gasodutos de distribuição.
Entretanto, as distribuidoras não têm obrigação de construir gasodutos para atender mercados sem viabilidade econômica. Isto ocorre porque o gás natural não é um energético essencial, como é o caso da eletricidade que não tem substituto. O gás natural é um energético que compete com outras fontes energéticas em todos os segmentos do mercado. Desta forma, a boa prática regulatória requer que os projetos de expansão da rede sejam feitos respeitando o critério de viabilidade econômica.
Ademais, a distribuição do gás via gasodutos é uma das formas de suprimento de gás natural. É possível também transportar e distribuir o gás natural a granel, na forma comprimida (GNC) ou liquefeita (GNL), por caminhões, por barcaças ou por cabotagem. Estes modais podem ser viáveis para suprimento do gás em mercados que não têm escala mínima necessária para serem atendidos via gasodutos.
Assim, uma visão estratégica da questão da interiorização do gás deve levar em conta dois elementos básicos:
i) políticas de aumento do mercado potencial do gás podem contribuir para viabilizar projetos de interiorização do gás;
ii) existem diferentes modais para levar o gás até o mercado, e que podem atuar de forma complementar, inclusive através de cooperação em projetos. Este é o caso dos projetos do tipo “gasoduto virtual” nos quais o GNC é transportado por caminhão até um ponto de descompressão, a partir da qual a Distribuidora desenvolve gasodutos de distribuição para atender clientes menores. O gás é transportado por caminhão, até que o mercado local atinja uma dimensão suficiente para viabilizar economicamente um gasoduto.
Com relação à demanda, duas políticas poderiam alavancar o potencial do mercado em regiões que não tenham grande potencial de consumo industrial:
i) a metanização da frota a diesel do País;
ii) o uso do gás na geração elétrica distribuída e geração em sistemas isolados.
Com relação à metanização da frota a diesel, é importante ressaltar que o óleo diesel é a principal fonte utilizada para o transporte de cargas pesadas no País. De acordo com dados da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis, o consumo de diesel no Brasil em 2019 somou 57 bilhões de litros. Desse total, a dependência externa foi de 23%. Ou seja, o Brasil tem muito a ganhar em substituir parte da demanda de diesel por gás natural (ANP, 2020).
O Brasil já conta com um programa robusto de GNV em veículos leves, com a conversão de motores ciclo Otto. Atualmente, o país conta com cerca de 2,5 milhões de automóveis convertidos e 1.563 postos de abastecimento de GNV que atingiram um consumo médio de 6,26 milhões de m3/dia em 2019 (MME, 2020).
O uso do gás natural em veículos pesados pode ser feito a partir da substituição do motor ciclo diesel pelo motor ciclo Otto, que permite a queima do gás, ou através da conversão de motores diesel em motores diesel-gás com o uso de kits de conversão.
Esses motores podem queimar tanto GNC como GNL. No caso dos veículos pesados, o GNL tem se tornado a opção preferida em relação ao GNC em função da maior densidade energética, que permite o veículo percorrer longas distâncias sem reabastecer. A utilização do GNL em veículos pesados está em franca expansão, em particular na China que já conta com uma frota de mais de 300 mil caminhões movidos a GNL.
Na Europa, a maioria das montadoras de veículos pesados já conta com opções a gás natural. No Brasil a Scania já produz caminhões a gás na sua unidade em São Bernardo (SP).
O uso do GNL como combustível para o transporte exige investimentos na cadeia logística do GNL e nos sistemas de abastecimento a GNL. Muitos países europeus e os Estados Unidos vêm criando corredores logísticos que contam com postos ao longo das rodovias, todos estruturados para abastecer veículos pesados com gás natural comprimido e/ou GNL.
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Estes corredores são conhecidos como “Corredores Azuis”. No caso do Brasil, é possível adaptar a infraestrutura atual de postos a GNV para também oferecer GNL. Os postos de GNV atuais que vendem gás natural comprimido podem ser convertidos para também fornecer GNL em uma estação L-CNG (Liquefied-Compressed Natural Gas). Em estações L-CNG, ambos os dispensadores de GNL e GNC estão disponíveis.
A criação de uma política para o uso do gás natural na forma de GNC ou GNL em veículos pesados no Brasil apresenta enormes benefícios econômicos e estratégicos. Além de vantagens ambientais (menores emissões) e contribuir para a redução da importação do diesel, esta política contribuiria para criar mercados para o gás nas regiões menos industrializadas do país, onde existe consumo importante de diesel no transporte rodoviário de cargas (Mouette et. al., 2019 e Coelho, 2019).
Outra iniciativa complementar que poderia contribuir para alavancar a demanda de gás nas regiões distantes do atual sistema de transporte de gás é o seu uso na geração distribuída e nos sistemas isolados brasileiros. Em 2018, a EPE contabilizou 270 sistemas isolados no Brasil. Tais sistemas registraram capacidade instalada de geração de 1.125 MW em motores diesel. Tais números, aparentemente modestos, representam um considerável impacto nas contas setoriais, dado que a geração nos Sistemas Isolados é subsidiada por meio da Conta de Consumo de Combustíveis (CCC). De acordo com a Câmera de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), o orçamento previsto para a CCC em 2018 foi da ordem de R$ 6,2 bilhões. Esse elevado custo está associado à alta participação de geração a partir de óleo diesel (EPE, 2018).
Nos sistemas isolados, 97% da potência instalada é de usinas termelétricas a óleo diesel. A elevada participação do diesel faz com que a geração nos Sistemas Isolados seja altamente intensiva em emissões. Conforme levantado pela EPE (2018) as emissões totais na geração, estimadas para o ano de 2019, é de 2,94 milhões de toneladas equivalentes de CO2, valor 7,4 vezes superior ao do sistema interconectado nacional (SIN).
Nesse sentido, a substituição do diesel pelo gás natural para geração de energia elétrica nos sistemas isolados tem o potencial de reduzir as emissões de CO2, ao mesmo tempo em que garante a segurança do suprimento de energia elétrica às localidades não conectadas ao SIN. Este sistema energético alternativo pode inclusive ser híbrido, com a adoção do gás natural como geração complementar a sistemas solares ou eólicos. Neste caso, o GNL aparece como ótima alternativa para reduzir os custos de suprimento com a respectiva redução do subsídio aos sistemas isolados através da CCC.
A oferta de gás através do transporte de GNC ou GNL a granel vem ganhando espaço em função do desenvolvimento tecnológico no transporte de GNL por caminhões, locomotivas, barcaças e navios de pequeno porte. O GNL é estocado no consumidor final através de tanques criogênicos do tipo C e a regaseificação é feita no local através de um kit de vaporizadores. Esta opção tecnológica é conhecida na literatura especializada como small scale LNG (“ssLNG”) (Strategy &, 2017).
Esta tecnologia vem experimentando inovações e reduções de custos significativas. Em vários países a distribuição do GNL através do ssLNG passou a ser uma via importante de desenvolvimento do mercado de gás (China, Estados Unidos, Suécia, e Rússia, entre outros). Várias empresas já estão se posicionando para explorar este mercado do suprimento de gás via ssLNG, não apenas para o mercado veicular, mas também para outros segmentos de mercado hoje atendidos via derivados de petróleo como a geração elétrica e setor industrial (OIES,2014). e IGU, 2020).
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No Brasil, a tendência internacional de uso do GNL como um vetor de desenvolvimento de novos mercados de gás começa a se desenhar a partir de projetos liderados pela Golar Power e pela Eneva. A empresa norueguesa Golar Power tomou a dianteira no Brasil no desenvolvimento de mercados de gás, a partir do GNL. A empresa tem um projeto de interiorização da distribuição do GNL a partir das importações de GNL para atender os projetos termelétricos dos quais é sócia em Barra dos Coqueiros – Sergipe (recentemente inaugurado) e no Barcarena – Pará. A partir das importações nestes dois pontos a empresa pretende desenvolver projetos para interiorizar o suprimento de gás no Nordeste e Norte onde não existe gás canalizado (Silva, 2018).
Uma estratégia importante da Golar é desenvolver o mercado de GNL para caminhões através da implantação de “corredores azuis” no país (Raposo, 2019). Além de fornecer GNL para o segmento veicular, a empresa pretende ofertar o GNL para o segmento industrial, em particular em regiões não atendidas atualmente pela rede de gás natural. A Golar está também negociando acordos de cooperação com distribuidoras de gás para desenvolver projetos do tipo “gasodutos virtuais”, nos quais o GNL é transportado por caminhão até uma central de regaseificação, a partir da qual a distribuidora constrói uma rede de gasodutos de baixa pressão para atender clientes menores.
Em julho de 2020 a empresa Golar anunciou a implantação de um Terminal de Gás Natural Liquefeito (GNL) no Complexo Industrial Portuário de Suape, que deverá entrar em operação no primeiro trimestre de 2021. Esse GNL deverá suprir geração de energia elétrica, atender demandas industriais, residenciais e comerciais, além de postos de GNV/GNL. O gás será distribuído em parceria com a distribuidora estadual (Copergás) e impulsionará o desenvolvimento da economia das cidades do interior do Estado e do Nordeste não atendidas por gasoduto. Da mesma forma, a empresa pretende investir na interiorização do GNL na região Amazônica, a partir do terminal de GNL a ser construído em Barcarena para atender uma térmica a gás.
O projeto integrado de produção de gás natural e geração de energia – reservoir to wire (R2W) da Eneva, programado para entrar em operação em junho de 2021, contemplará a perfuração dos poços do campo de Azulão, na Bacia do Amazonas, associado a um sistema de liquefação de gás para transporte por rodovia via carretas. Todo o gás produzido em Azulão será liquefeito e armazenado para ser transportado em caminhões com tanques criogênicos até as instalações da UTE Jaguatirica II, em Boa Vista, a 1,1 mil km de distância, fornecendo energia para o sistema isolado de Roraima. O projeto prevê a utilização de 110 carretas de transporte, que cruzarão a BR 174 (Manaus-Boa Vista) (ENEVA, 2019).
Estes projetos são apenas exemplos de novas estratégias e modelos de negócios que estão se desenhando para o desenvolvimento do mercado de gás. É importante que o conjunto dos stakeholders do setor de gás fiquem atentos a esta nova tendência. A disponibilidade de GNL, juntamente com o desenvolvimento tecnológico nas cadeias do ssLNG e do uso de GNL em caminhões e sistemas de geração distribuída, podem abrir grandes oportunidades para levar o gás na grande parte do território nacional que hoje desconhece este energético. Para isto, esta possibilidade exigirá do governo federal, ANP, governos estaduais e reguladores estaduais um novo olhar e uma nova abordagem para a política de desenvolvimento do mercado de gás. O mundo do gás está mudando e as políticas setoriais precisam acompanhar estas mudanças.
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