Em outubro, ANP pediu suspensão da venda sem intermediários; dois meses depois, agência mudou de posicionamento
Em 2017, foram consumidos mais de 13 milhões de metros cúbicos de etanol hidratado para veículos no Brasil. Isso representa uma parcela de 17,4% do mercado nacional de combustível utilizado para o abastecimento de automotores comuns e com a tecnologia flex, que podem ser abastecidos com gasolina e etanol.
Recentemente, entidades do setor sucroalcooleiro, que é alternativa ao uso da gasolina tradicional, estão diante de um impasse no Judiciário. A discussão é se o produto pode ser vendido diretamente das usinas de produção aos postos revendedores, sem a necessidade de passar por uma distribuidora. O processo tramita no Nordeste, mas uma decisão favorável ou contra a venda direta pode ter consequências em todo o território nacional – seja ao fixar um precedente jurídico seja ao influenciar projetos que tramitam no Congresso.
A batalha pela venda direta de etanol começou em julho de 2018, após decisão da 10ª Vara Federal de Pernambuco, no processo nº 0808280-47.2018.4.05.8300, que concedeu liminar autorizando usinas de Pernambuco, Sergipe e Alagoas a venderem o produto sem uma distribuidora como intermediária.
A ação foi impetrada por sindicatos da indústria do açúcar e do álcool contra as resoluções 43/2009 e 41/2013 da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), que obriga a presença de um distribuidor no processo de venda e aplica sanções caso a prática não seja estabelecida.
A ANP recorreu da decisão por meio de um pedido de efeito suspensivo. Em outubro de 2018, o Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF5) deferiu o pedido da agência e proibiu a venda direta de etanol nas usinas nordestinas. A alegação da ANP era que a venda sem distribuidora desestabilizaria o mercado e causaria problemas de arrecadação do PIS/Cofins no valor de R$ 2,185 bilhões anuais.Entretanto, em apenas dois meses, o posicionamento da ANP mudou.
Em dezembro de 2018, a autarquia publicou nota defendendo a venda direta do combustível. A agência afirma que novos estudos comprovam que o processo sem intermediário reduziria o preço final do etanol ao consumidor.
Empresas que defendem as distribuidoras, antes alinhadas com a ANP, alegam que motivos políticos influenciaram para a mudança repentina. A agência, entretanto, afirma em seu estudo que não são encontrados “óbices regulatórios para a liberação de venda direta de etanol das usinas”. O argumento é o oposto ao apresentado pela própria ANP nos processos judiciais.
Segundo a ANP, o etanol destinado aos veículos é relevante em regiões como a Sudeste, onde o representa 28% do abastecimento de combustíveis de automotores, Centro-Oeste, onde representa 24% do total, e no estado do Paraná, onde o produto ocupa 23% do mercado de abastecimento. Em outras regiões, essa proporção é bem menor: no Norte o etanol representa 3% do total do mercado de combustíveis, e no Nordeste, 7%.
Os dados do estudo da autarquia mostram que os estados do eixo Centro-Sul produzem 87% do total de álcool no país. “A pouca penetração do etanol em diversos estados do país pode ser explicada por restrições econômicas ao transporte do etanol dos centros produtores por grandes distâncias para mercados consumidores, o tratamento dado pelos estados de São Paulo e Minas Gerais, no que tange a incidência do ICMS, para estimular o consumo do etanol hidratado”, diz trecho da nota.
Ao retirar a intermediação da venda de etanol por distribuidoras, alega a ANP, o produto ficaria mais barato e o processo de abastecimento seria simplificado.
A pesquisa da ANP também recebeu 32 manifestações de empresas, consultorias, órgãos federais e distribuidoras. Metade das manifestações foi contra a venda direta e 13 se posicionaram a favor. As três restantes não tiveram posicionamento final.
“As manifestações a favor [da venda direta de etanol a postos de combustível] apresentam como principal argumento a ampliação da concorrência e da eficiência econômica, por meio da redução de um dos elos da cadeia e da possível redução de preço para o consumidor final”, diz o relatório.
O estudo acrescenta que a introdução de uma distribuidora intermediária pode gerar “ineficiência logística”, provocada pela necessidade de passagem do etanol por bases de distribuição distantes do centro consumidor.
Para a ANP, caso o produtor de etanol esteja dentro dos padrões exigidos pela agência, não há motivo para o bloqueio da venda direta. As distribuidoras afirmam que o processo diminuiria a qualidade do etanol presente nos carros de consumidores, pois o produto não passaria pelos centros de controle.
Entretanto, a agência alega que o próprio regulamento da ANP obriga que o produto esteja sem adulterações, fato que dispensaria a passagem do etanol pelos centros de controle. “O produtor de etanol emite, obrigatoriamente, o certificado de qualidade e atesta que o produto contido nos tanques de expedição está especificado”, diz o estudo.
Além da ANP, o Ministério da Fazenda também publicou estudo defendendo a venda direta. A publicação, de dezembro de 2018, afirma que haverá uma redução de 47% no custo logístico total com a venda sem a presença das distribuidoras. Somente para o estado de São Paulo, o ganho econômico seria de R$ 263,5 milhões por ano.
“A implementação da monofasia [regime tributário] ajudará no combate do fenômeno conhecido como distribuidora ‘barriga de aluguel’. Distribuidoras dessa natureza atuam na base da sonegação tributária, com foco na comercialização de Etanol Hidratado Combustível (EHC), apontado como foco principal dos desvios de arrecadação”, informa a pesquisa.
Distribuidoras – As distribuidoras e empresas que defendem a proibição da venda direta do etanol afirmam que, atualmente, o produtor e o distribuidor são responsáveis pelo recolhimento do PIS/Cofins incidentes sobre a receita bruta da venda do etanol hidratado na proporção de R$ 0,13 por litro e R$ 0,11 por litro, respectivamente. A ausência do distribuidor exigiria mudanças na legislação que regula a cobrança do tributo federal para concentrar a arrecadação no produtor.
“Vale a pena mudar um modelo de venda por causa de uma pequena diferença de preço ao consumidor final? As distribuidoras recolhem PIS/Cofins, ICMS. No momento em que passar para a venda direta, quem recolherá essa parcela de tributo? “, questiona Helvio Rebeschini, diretor de planejamento estratégico e mercado da Plural.
De acordo com estudo da Plural, a venda direta aumentaria em 24,7% os custos logísticos de postos de combustível. “Quando a cadeia de logística das distribuidoras é quebrada, o preço da gasolina e do diesel precisará subir para tapar o buraco de arrecadação dessas empresas [distribuidoras]”, afirma Rebeschini.
Outra consequência da remoção das distribuidoras do processo de venda do etanol, segundo o diretor, seria a queda de qualidade do produto final ao consumidor. “Distribuidoras têm a preocupação com a qualidade. Precisam honrar o nome da marca. Com a venda direta, o etanol não passará pelos centros de distribuição e controle de qualidade dessas empresas. O produto fica exposto”, diz o diretor.
Além disso, Rebeschini afirma que os postos sem bandeira e em localidades próximas às usinas serão os maiores beneficiados pela venda direta. A localização permitiria que eles comprassem o etanol por um preço menor, e o produto final poderá ser vendido por uma tarifa inferior à praticada no mercado.
“É um problema concorrencial. Os postos distantes não poderão vender o produto por um preço semelhante. Os que desejarem utilizar uma distribuidora também precisarão pagar por mais tributos”, diz.
No Senado, o projeto de decreto legislativo 61/2018, de autoria do senador Otto Alencar (PSD/BA), pretende permitir a venda direta de etanol. O projeto tem como justificativa a “crise institucional” causada pelas paralisações de caminhoneiros, em maio de 2018.
“A partir desta nova opção comercial, os produtores passam a competir com as distribuidoras nas vendas diretas. O pleito dos produtores não tem como objetivo a tomada do mercado das distribuidoras e sim a oportunidade de também comercializarem o etanol, sem os atravessadores”, escreve o senador na justificativa do projeto.
Para Rebeschini, a greve os caminhoneiros não tem relação com combustível e “muito menos com o etanol”. “A greve aconteceu por uma mistura de excesso de frotas e crise econômica. Faltou combustível porque os caminhoneiros bloquearam todas as vias de acesso”, afirma.
Fonte: Fonte: www.jota.info/