As modificações na tributação do consumo têm o potencial de modificar profundamente o mercado de combustíveis

Três propostas de Reforma Tributária são hoje mais relevantes no Congresso Nacional: as Propostas de Emenda Constitucional no 45, da Câmara dos Deputados, e 110, do Senado Federal, bem como o Projeto de Lei no 3.887/2020, de autoria do Poder Executivo.

Estas propostas foram objeto de debate promovido pela Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo e pelo Sindicato das Distribuidoras de Combustíveis do Estado da Bahia entre os autores deste texto e o ex-deputado federal Luiz Carlos Hauly em 10 de setembro de 2020.

A PEC 45 e a 110 estabelecem teoricamente dois tributos que poderiam incidir sobre o setor: o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e o Imposto Seletivo. A diferença notável é que a PEC 110 cria dois IBS, um federal e outro estadual e municipal, enquanto a 45 cria um tributo unificado sobre o consumo nas três esferas de governo, com subalíquotas nacionais, regionais e locais.

O IBS proposto pela PEC 45 implica em um impacto imediato no setor de combustíveis, pois prevê uma alíquota unificada para todas as operações a ele sujeitas. Ao fazê-lo, de um lado inviabiliza a prática dos estados de aumentar alíquotas de ICMS sobre combustíveis para aumento de arrecadação em tempos de crise fiscal.

Como esse tipo de bem tem demanda de baixa elasticidade, o aumento da alíquota e, portanto, do preço, tem pouco reflexo no comportamento dos consumidores. Assim, em momentos de crise fiscal, os estados tendem a recorrer ao aumento da tributação de combustíveis para aumentar sua receita.

De outro lado, a alíquota unificada impedirá a adoção de alíquotas específicas em função de unidades de medida (litros, metros cúbicos), atualmente autorizadas para o ICMS-Combustíveis pelo art. 155, § 4º, IV, “b”, da Constituição, com a redação da Emenda Constitucional no 33/2001.

Esta emenda teve por objetivo a abertura do mercado brasileiro de combustíveis e as alíquotas específicas, nesse cenário, teriam o objetivo de reduzir a distorção tributária no preço dos produtos de energia, que tem larga influência do mercado internacional[1].

Ocorre que as alíquotas específicas já hoje são alvo de críticas. Em estudo sobre a competitividade do mercado de combustíveis, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) já teve a oportunidade de apontar que as alíquotas específicas penalizam a eficiência econômica.

Isso porque, como as alíquotas têm base em unidades de medida e não no valor pago pelo consumidor, uma redução nos preços não fará variar o tributo devido, de modo que o fornecedor com preço menor suporta carga tributária proporcionalmente maior.

Um outro efeito mercadológico da PEC 45 é que o tributo unificado passará a comportar subalíquotas estadual, federal e municipal, de maneira que a alíquota total – e, portanto, os preços – variará não apenas entre estados, como hoje ocorre, mas também entre municípios.

Trata-se de evidente influência tributária sobre os preços dos combustíveis, podendo gerar ineficiências alocativas decorrentes da ausência de neutralidade.

Isto é: o consumidor tem mais facilidade de transitar entre municípios vizinhos com carga tributária menor do que entre estados vizinhos.

De outro lado, tanto a PEC 45 quanto a 110 estabelecem a possibilidade de criação de impostos seletivos para desestimular o consumo de bens e serviços. Os impostos seletivos sobre o consumo e importação de combustíveis são bastante comuns e frequentes no direito comparado[2], o que pode indicar que esse setor será alvo do novo tributo posteriormente à Reforma.

Preocupa, contudo, que a PEC 45 mantém a tributação do setor de combustíveis pela CIDE-Combustíveis, que já funciona como uma espécie de tributo seletivo. Assim, há o potencial de bitributação das operações em questão pelo novo imposto seletivo e a contribuição já existente.

Essa preocupação não existe na PEC 110, que extingue a CIDE-Combustíveis, justamente no propósito de substituí-la ou pelo IBS ou pelo imposto seletivo.

Já o PL 3.887/2020 substitui o PIS e a Cofins, tributos sobre a receita, pela Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), contribuição exclusivamente federal que se propõe, ao que parece, a incidir sobre operações com os aludidos bens e serviços.

Atualmente, a constitucionalidade da CBS tem sido alvo de intensa controvérsia. Isso porque a nova contribuição encontraria fundamento de validade no art. 195, I, “b”, da Constituição, que estabelece a competência para instituição de contribuições sobre receita e faturamento.

De maneira um tanto ambígua, o PL estabelece ora que a CBS incidirá sobre a receita decorrente da operação com bens e serviços (art. 2º), ora sobre as próprias operações (art. 1º). Há quem diga, portanto, que a CBS tenta tributar operações de competência dos estados e municípios, respectivamente pelo ICMS e ISS, sendo, portanto, inconstitucional.

Já outros autores entendem que é possível sim a tributação de faturamento decorrente das operações, que já acontece inclusive hoje na sistemática do PIS/Cofins não-cumulativos.

De uma maneira geral, o setor de combustíveis é pouco afetado pela CBS. Os dois pontos principais de potenciais discussões sobre os impactos da CBS no setor de combustíveis são: (i) sobre quem recairia o ônus do pagamento da CBS, na hipótese em que os produtores ou importadores de combustíveis não realizassem o pagamento da contribuição; e (ii) as inconstitucionalidades decorrentes da implantação do regime monofásico como obrigatório.

Em relação ao primeiro ponto, o artigo 37 estabelece que, após a incidência monofásica, as demais etapas da cadeia de venda de combustíveis são isentas da contribuição, desde que tenham sido tributadas anteriormente.

O referido artigo dá a entender que os distribuidores e varejistas podem ser responsabilizados pelo pagamento da contribuição, na situação em que os sujeitos passivos definidos pela lei (produtores e importadores de combustíveis – artigo 33) não efetuarem o recolhimento do tributo.

Não obstante, inexiste uma regra de inclusão dos distribuidores e varejistas como sujeitos passivos da relação jurídico-tributária, o que dificulta juridicamente a sua inclusão como responsáveis pelo pagamento da CBS.

Em relação ao segundo ponto, vale destacar em uma impressão inicial que, conquanto o Projeto de Lei da CBS disponha que a incidência monofásica aplica-se às “receitas” (artigo 32), há um vício de inconstitucionalidade na previsão obrigatória da referida sistemática.

Enquanto no sistema atual do PIS/Cofins os contribuintes podem optar pela incidência do PIS/Cofins (i) sobre as receitas decorrentes de operações com vendas de combustíveis são tributadas mediante aplicação de uma alíquota sobre o montante auferido (regra geral) ou (ii) sobre o sistema monofásico (Recob), que, opcional aos contribuintes, se tornou a prática do mercado, no sistema da CBS há previsão apenas de incidência monofásica.

Nesse cenário, a CBS incidiria sobre valores fixos (Anexo II) às operações com combustíveis (gasolina e correntes, óleo diesel e correntes, GLP, biodiesel e álcool), mantendo os mesmos valores incidentes atualmente no Recob, mas incluindo o Gás Natural Veicular (GNV) na sistemática em questão.

Conquanto tal sistemática seja atualmente conhecida pelo setor de combustíveis e que na prática, como pontuamos, seja a adotada pelo mercado, as contribuições do artigo 195, inciso I, “b”, da CF somente podem incidir sobre receita ou faturamento.

Qualquer outra grandeza distinta que seja obrigatória aos contribuintes, conquanto benéfica e represente uma prática do mercado, deve ser reputada por inconstitucional.

Assim, se há alguma controvérsia sobre a constitucionalidade da CBS em geral, no caso dos combustíveis ela é claramente inconstitucional porque não toma por base o faturamento ou a receita, mas sim o volume de bens transacionados na operação, aproximando-se de um IVA.

Com efeito, duas empresas que vendam o mesmo volume de combustíveis a preços diferentes terão receita diversa, mas pagarão o mesmo valor de CBS. Na proposta do Executivo, portanto, no que diz respeito ao setor de combustíveis, a CBS incide sobre a operação, não sobre a receita dela decorrente – competência atribuída pela Constituição Federal.

Nem se diga que o § 9º do art. 195 da Constituição autorizaria a aplicação de alíquotas diferenciadas em razão da atividade econômica. Isso porque a alíquota, ainda que diferenciada, somente pode refletir o critério material da competência: não se pode adotar proxies de consumo para mensurar a receita.

Basta notar que os tributos para os quais a Constituição expressamente admite alíquotas específicas por unidade de medida são tributos sobre o consumo: ICMS e CIDE-Combustíveis.

Também não se pode argumentar que hoje já há nas contribuições ao PIS/Cofins tributação por alíquotas específicas por unidade de medida com base nas leis no 9.718/1998 e 10.833/2003. Trata-se, como já pontuado, do Regime Especial de Apuração das Contribuições Incidentes sobre Combustíveis e Bebidas (Recob).

Em primeiro lugar, porque mesmo esse regime pode ser objeto de questionamento da sua constitucionalidade ao mesmo fundamento. Em segundo lugar, porque o Recob atual é um instrumento de política fiscal que demanda opção expressa do contribuinte, ao contrário das alíquotas específicas da CBS que seriam obrigatórias e universais para o setor.

É preciso atentar que o setor de combustíveis trabalha com um insumo essencial ao desenvolvimento do país que também é uma commodity fortemente influenciada pelo mercado internacional.

Assim, eventual Reforma Tributária deve analisar criteriosamente seus efeitos sobre esse mercado, evitando resultados imprevistos que podem causar danos profundos e de difícil recuperação.

*Fonte: jota.info

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